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2025

Leite em crise ou oportunidade? Estratégias que redefinem o setor lácteo francês

As iniciativas da Sodiaal e da Danone refletem duas estratégias complementares para o futuro do leite: uma reafirma a identidade local e cooperativa, enquanto a outra aposta na sustentabilidade e inovação global. Ambas buscam reconectar o leite à sua origem, conciliando tradição, transparência e responsabilidade ambiental. O desafio comum é transformar propósito em prática, equilibrando viabilidade econômica, inclusão produtiva e coerência entre discurso e ação.

No cenário atual do setor agroalimentar, duas iniciativas francesas chamam atenção pela maneira como conectam tradição, sustentabilidade e estratégia: a nova assinatura da cooperativa Sodiaal — “Oui au lait de notre coopérative” — e o lançamento da “Milk Academy” pela Danone. Embora diferentes em estrutura e alcance, ambas expressam um mesmo movimento: o esforço de reconectar o leite à sua origem e preparar a cadeia produtiva para um futuro que exige mais transparência, mais sustentabilidade e mais coerência entre discurso e prática.

A Sodiaal, maior cooperativa leiteira da França, escolheu afirmar seu modelo “100% francês” como símbolo de identidade e de soberania alimentar. Ao dizer “sim ao leite da nossa cooperativa”, a empresa não apenas reforça o vínculo entre produtores e consumidores, mas também valoriza a dimensão humana e territorial da produção. Em um mercado globalizado e pressionado por preços baixos, essa escolha representa uma aposta na autenticidade e na valorização da origem — um gesto de resistência ao ritmo impessoal das grandes cadeias agroindustriais. No entanto, ela também levanta questões sobre a viabilidade desse modelo em um contexto de custos elevados, margens estreitas e exigências crescentes de competitividade internacional.

A Danone, por sua vez, aposta na transformação sustentável como estratégia de futuro. A criação da Milk Academy visa capacitar produtores em todo o mundo, promover práticas agroecológicas e regenerativas e preparar as fazendas para os desafios climáticos e regulatórios que se intensificam a cada ano. O projeto é ambicioso e responde a uma necessidade concreta: modernizar a cadeia leiteira e torná-la mais resiliente. Mas essa transição implica investimentos significativos e uma adaptação profunda das estruturas de produção. A diferença de recursos e de acesso entre grandes e pequenos produtores pode criar novos desequilíbrios, e a sustentabilidade corre o risco de se tornar um ideal distante se não for acompanhada de políticas de inclusão e apoio econômico real.

O que une Sodiaal e Danone é a tentativa de redefinir o valor do leite. Ambas reconhecem que o produto já não pode ser visto apenas como uma commodity: ele carrega consigo o território, a cultura, o meio ambiente e o trabalho de milhares de famílias. Em tempos de transição agroalimentar, comunicar essa complexidade é fundamental para reconquistar a confiança do consumidor e reposicionar o leite como um alimento com sentido — e não apenas com preço. Contudo, há um desafio evidente: equilibrar propósito e viabilidade. A valorização da origem, por si só, não garante rentabilidade; e a sustentabilidade, se não for acompanhada de condições justas de produção, pode se tornar apenas um discurso.

A reflexão que emerge dessas iniciativas é mais ampla que o próprio setor lácteo. O leite volta a ser um espelho das transformações do sistema alimentar: de um produto essencial e cotidiano, ele se torna um campo de disputa simbólica, onde se confrontam modelos econômicos, visões de sociedade e expectativas de futuro. O que está em jogo é a capacidade do setor de reinventar-se sem perder sua essência, de inovar sem excluir, e de comunicar não apenas o que produz, mas o que representa.

Na Verakis Food Academy, olhamos para esse movimento como um sinal do tempo. A transição agroalimentar não é apenas tecnológica — é cultural, ética e comunicacional. O desafio que se impõe é o de transformar promessas em práticas, narrativas em compromissos e o leite, novamente, em símbolo de equilíbrio entre pessoas, território e planeta. Em meio às tensões entre o local e o global, entre o passado e o futuro, entre o discurso e a ação, o leite continua a dizer muito sobre quem somos — e sobre o tipo de sociedade que queremos alimentar.

Imagem : Freepik