A troca de informações é inerente à experiência humana. No entanto, quando aplicada ao universo da alimentação na era digital, o que era para ser um processo de informação e esclarecimento se transformou em uma estridente Cacofonia.
A enxurrada de dados sobre o que comemos – ou deveríamos comer – não apenas atinge a população despreparada, mas a deixa paralisada pela sobrecarga e pela falta de bússola crítica.
O panorama atual valida a sombria análise de Gérald Bronner em Apocalipse Cognitivo: o mercado da informação, submetido à lógica da atenção e do clique, está em franco declínio qualitativo. Se, no século XVIII, Jean-Jacques Rousseau já lamentava a suposta decadência do intelecto humano, imagine o que ele diria hoje, quando a educação formal e a orientação familiar caminham, em muitas esferas, para o descrédito e a irrelevância perante o poder dos algoritmos e das desinformações.
O ponto central não está apenas na informação emitida, mas na legitimidade percebida e na capacidade crítica do receptor.
O Ecossistema das Plataformas Digitais de Alimentação
As plataformas digitais são ferramentas estratégicas de publicação de um bem, serviço ou ideia, mas operam sob lógicas distintas, cada uma com seu risco e intento:
1. Plataformas Comerciais
- Intuito Primário: Venda, Transação e Logística.
- Exemplos: iFood, Uber Eats, Deliveroo, sites de atacadistas e grandes varejistas (Pão de Açúcar, Carrefour).
- Conteúdo Veiculado: Ofertas, menus, preços, logística de entrega, informações básicas do produto.
- Riscos e Desafios: Foco absoluto no consumo e na conveniência, ignorando aspectos nutricionais ou de sustentabilidade da cadeia e promovendo o excesso de escolha.
2. Plataformas Publicitárias e de Relações Públicas
- Intuito Primário: Branding, Posicionamento e Marketing Digital.
- Exemplos: Perfis de grandes empresas de alimentos nas Redes Sociais (Instagram, TikTok), websites corporativos de empresas (ex: Nestlé, Danone).
- Conteúdo Veiculado: Histórias de marca, responsabilidade social corporativa, receitas patrocinadas, "cartão de visitas" digital.
- Riscos e Desafios: Submissão total às “regras do marketing digital”, o que prioriza a emoção e o engajamento sobre a verdade factual ou nutricional, criando uma percepção de marca idealizada.
3. Plataformas de Consumidor e Ativismo
- Intuito Primário: Engajamento, Militantismo e Pressão social.
- Exemplos: L214 (França), grupos de ativismo vegano ou pró-orgânicos em mídias sociais, Greenpeace.
- Conteúdo Veiculado: Denúncias (muitas vezes chocantes), campanhas de conscientização (por vezes hiperbólicas), mobilização social rápida.
- Riscos e Desafios: Risco de extremismo, simplificação excessiva de problemas complexos e uso de emocionalismo para distorcer dados científicos ou induzir culpa.
4. Plataformas de Criação e Compartilhamento de Conhecimento
- Intuito Primário: Avaliação, Comparação e Educação do consumidor.
- Exemplos: Yuka, Open Food Facts, Scan Up, Kwalito, FFAS (Fundo Francês para a Alimentação e Saúde), Food Tech Dijon.
- Conteúdo Veiculado: Notas de saúde, scores de produtos, rankings, comparação de ingredientes.
- Riscos e Desafios: Criação de mitos e medos (como o caso dos hormônios em aves), legitimação de metodologias simplistas (como o Nutri-Score) como verdade absoluta e a falsa sensação de controle total sobre o que se come.
5. Plataformas Informativas Oficiais e Científicas
- Intuito Primário: Divulgação de Pesquisa, Leis e Recomendações baseadas em evidências.
- Exemplos: FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), OMS (Organização Mundial da Saúde), INRAE (Instituto Nacional de Pesquisa para a Agricultura, Alimentação e Meio Ambiente), INAO (Instituto Nacional de Origem e Qualidade), ANIA (Associação Nacional da Indústria Alimentar), EUFIC (Conselho Europeu de Informação Alimentar).
- Conteúdo Veiculado: Dados científicos, diretrizes oficiais, legislação, resultados de pesquisas.
- Riscos e Desafios: Baixa visibilidade, linguagem muitas vezes inacessível ao público geral e dificuldade de competir com o conteúdo viral de influenciadores, sendo frequentemente vítimas de descontextualização.
O Perigo da Verdade Absoluta
O maior paradoxo é que a abundância de informação, que poderia promover a controvérsia e incitar a busca por conhecimento, está gerando o oposto. Devido à baixa capacidade crítica, as informações são vistas como verdades absolutas, alimentando mitos, medos e crenças infundadas.
Um bom exemplo é a histeria em torno de temas como o uso de hormônios em frangos, um mito que persiste apesar de ser cientificamente refutado por órgãos como a ANIA e o INRAE.
O ponto mais grave é que o problema da acriticidade não se restringe ao público leigo. A formação de jovens cientistastem se mostrado tão decadente que, muitas vezes, são eles próprios que absorvem e replicam esses dados simplificados de plataformas de fácil acesso, transformando desinformação em crença. Estes novos pesquisadores, que deveriam ser os primeiros a questionar, ter um pensamento complexo, uma visão de mundo multifacetada que integra diferentes pontos de vista (como propõe Edgar Morin), falham ao informar e compartilhar dados como se houvesse verdades absolutas, ignorando que o contexto, o ponto de vista e os interesses inevitavelmente interferem nos resultados e no conteúdo veiculado.
Criando um Espírito Crítico: Além da Informação
Portanto, a solução não reside apenas em "ensinar mais", mas em repensar a estratégia de combate à desinformação. O problema de fundo não é a ausência de dados, mas a ausência de um espírito crítico capaz de:
- Questionar a Fonte: Quem está publicando (legitimidade) e qual é o seu interesse (intuito)?
- Identificar o Viés: O conteúdo é publicitário, ativista ou científico?
- Analisar a Complexidade: A realidade nutricional e da cadeia alimentar é complexa; desconfiar de verdades absolutas e simplistas.
O desafio é usar a informação (veiculada pelas inúmeras iniciativas sérias como PPNS - Programa Nacional de Nutrição e Saúde, PNA - Política Nacional de Alimentação, Oquali/Alissa, WWF, Unesco e FAR - Fórum para a Alimentação e a Pesquisa) não como uma aula expositiva, mas como uma ferramenta de controvérsia que force o consumidor digital a pensar, a buscar o dado original e a discernir o ruído da realidade.
Referências Citadas
Para a citação de autores e conceitos principais, utilize as seguintes referências:
- BRONNER, Gérald. Apocalypse Cognitive: Essai sur la déconnexion numérique. Paris: Éditions des Équateurs, 2021.
- (Referência utilizada na crítica ao declínio do mercado da informação).
- ROUSSEAU, Jean-Jacques. A menção à decadência do intelecto humano é um tema recorrente em sua obra, notavelmente no Discurso sobre as Ciências e as Artes (Primeiro Discurso), publicado em 1750, onde ele critica o progresso e o efeito corruptor das ciências e das artes sobre a moral.
- (Referência utilizada no contraste entre a crítica do século XVIII e a era digital).
- MORIN, Edgar. O conceito de "pensamento complexo", a necessidade de um olhar de perspectiva e a integração de diferentes pontos de vista são centrais na sua obra, como em Introdução ao Pensamento Complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 1990 (ou edições subsequentes).
- (Referência utilizada na crítica à formação de jovens cientistas e à necessidade de uma visão multifacetada).

