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2025

Inteligência artificial na alimentação: quando o “poder fazer” atropela o “dever fazer”

A inteligência artificial já influencia decisões na segurança alimentar, mas seu uso levanta dilemas que vão além da tecnologia. Sem ética e governança, a IA pode reforçar desigualdades e concentrar poder. No sistema alimentar, a questão central é decidir a serviço de quem essas ferramentas operam.

A inteligência artificial avança rapidamente nos sistemas alimentares: promete antecipar riscos sanitários, tornar inspeções mais eficientes, personalizar dietas e otimizar decisões ao longo da cadeia agroalimentar. Mas, como lembra o trabalho recente da AZTI, a questão central já não é mais o que a IA pode fazer, e sim o que ela deve fazer — e, sobretudo, quem decide isso.

A tecnologia não é neutra: ela incorpora valores, prioridades e visões de mundo que raramente são explicitadas quando algoritmos entram em áreas tão sensíveis quanto alimentação e saúde.

O relatório da FAO sobre IA aplicada à segurança alimentar reforça esse ponto ao mostrar aplicações concretas já em curso: modelos preditivos de surtos, ferramentas para priorizar inspeções, análise automatizada de dados de contaminação.

O potencial é real, especialmente em contextos de recursos limitados. Mas o próprio relatório alerta para riscos estruturais: dependência tecnológica, assimetrias entre países, qualidade desigual dos dados e a concentração de capacidades técnicas em poucos atores. Em outras palavras, a IA pode fortalecer a segurança alimentar — ou aprofundar desigualdades já existentes.

É aqui que a ética deixa de ser um adendo e passa a ser condição. Não basta que um sistema funcione bem do ponto de vista técnico; é preciso perguntar quem é beneficiado, quem é invisibilizado e quem arca com os erros.

Algoritmos treinados com dados enviesados podem reproduzir discriminações; sistemas opacos podem minar a confiança pública; decisões automatizadas podem substituir julgamentos humanos em contextos onde a incerteza é a regra, não a exceção.

No setor alimentar, essas escolhas têm consequências diretas sobre saúde pública, acesso a alimentos seguros e soberania alimentar. Delegar decisões críticas a sistemas que poucos compreendem — e menos ainda governam — pode transformar a promessa de inovação em uma nova forma de fragilidade.

A pergunta incômoda permanece: estamos usando a IA para proteger os sistemas alimentares ou para gerenciar riscos de forma mais eficiente, sem enfrentar suas causas estruturais?

Entre o entusiasmo tecnológico e o medo paralisante, existe um caminho mais exigente: incorporar ética, transparência e governança desde o desenho das soluções. Porque, na alimentação, fazer mais rápido ou mais barato nunca pode ser mais importante do que fazer de forma justa, responsável e humana.

Fontes: AZTI – Ethics in Artificial Intelligence for Food and Health; FAO – Artificial Intelligence for Food Safety: A Literature Synthesis, Real-World Applications and Regulatory Frameworks.

Imagem: Freepik